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Anielle Guedes

Controversa moeda digital, Libra perde aliados e segue na mira dos governos

Anielle Guedes

10/10/2019 04h00

Os recentes acontecimentos no mundo da criptomoeda Libra nos fazem questionar sua viabilidade. Discussões em Bruxelas, a perda de um importante parceiro e dificuldades em explicar e dar garantias de sua estabilidade estão colocando em que xeque a promessa da moeda digital global do Facebook. Ou ao menos atrasando seu lançamento.  

Enquanto há a promessa de que o Facebook será apenas um dos membros, sem maior poder de decisão do que as outras empresas envolvidas, a maioria das empresas envolvidas no projeto estão ligadas ao Facebook. Agora, o PayPal, um dos principais envolvidos na Libra, anunciou sua saída do projeto, supostamente devido à má recepção de órgãos reguladores ao redor do mundo.

Há quem imagine que a Libra vai mexer com a economia mundial, colocando os bancos tradicionais em risco. Há quem pense que o projeto não dará certo. Será que a Libra vai mesmo impactar a economia global?

O surgimento da moeda

Em junho de 2019, Facebook pegou o mundo inteiro de surpresa com o anúncio da criação de sua própria criptomoeda: a Libra. Com o poder da gigante de Mark Zuckerberg, é claro que os impactos foram praticamente imediatos e a Libra foi encarada por especialistas como um risco ao sistema bancário internacional. A grande sacada do Facebook foi não iniciar esse processo sozinho e, sim, apoiado por diversos parceiros.

Ebay, Spotify, Uber, Mastercard e muitas outras empresas foram anunciadas como parte da Associação Libra, um grupo registrado na Suíça com cem membros, cada um com poder de voto semelhante. De acordo com o executivo responsável pelo projeto, David Marcus, do Facebook, nenhuma empresa deve ser totalmente responsável pela criptomoeda e a intenção é desenvolver uma organização independente, baseada em membros e cooperativa.

Com essa reunião de grandes empresas, não apenas assegura-se mais transparência no processo, como também compartilhar os riscos do empreendimento. Desde a crise de 2008, as empresas estão sob a pressão de que algumas instituições são tão grandes e interconectadas, que seu fracasso pode ser desastroso para todo o sistema econômico. Com a união de gigantes, em tese existem menos chances de um colapso. 

Marcus ainda afirmou que o papel do Facebook será igual ao das outras empresas: apenas o poder de voto, sem nenhum controle. Porém, uma análise da revista Wired mostra que 15 das 27 empresas fundadoras da Libra estão direta ou indiretamente ligadas ao Facebook, incluindo membros que empregam ex-executivos do Facebook ou membros do conselho em comum com a empresa.

A moeda está prevista para passar a funcionar em 2020, por meio de um sistema supostamente seguro de pagamento baseado em blockchain, apoiado por ativos sólidos e projetado para usuários comuns. A Calibra lançará sua própria carteira, que será usada para estocar a Libra e fazer pagamentos e transferências. 

A saída estratégica do PayPal

Uma das principais empresas envolvidas na Libra era a empresa de pagamentos on-line PayPal, que acabou de anunciar sua saída. Segundo a Bloomberg, parceiros da Libra estariam deixando o projeto por causa da recepção negativa que a criptomoeda vem recebendo de órgãos reguladores ao redor do mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, o Comitê de Serviços Financeiros está debatendo a possibilidade de proibir empresas como Facebook de criar criptomoedas. Já o governo francês disse que bloquearia o desenvolvimento na União Europeia.

Em nota, o PayPal afirmou que resolveu renunciar à sua participação para seguir focada na missão de democratizar o acesso a serviços financeiros para populações carentes. A imprensa americana acredita que o PayPal não é a única empresa que deverá sair do projeto. Visa e Mastercard estão reconsiderando suas posições neste plano. O executivo-chefe da Visa diz que o envolvimento da empresa era apenas provisório e que, por enquanto, nenhuma companhia está oficialmente ligada ao projeto.

E se os bancos centrais entrassem no jogo?

Há anos os bancos centrais do mundo afirmaram estar estudando moedas digitais e a maioria deixou a possibilidade aberta para que pudessem lançar suas próprias alternativas. Esse dia pode estar, enfim, chegando por conta do lançamento da Libra. A súbita transformação econômica, que pode atingir bilhões de pessoas no mundo, colocou os bancos centrais em posição de defesa.  

O People's Bank of China está à frente da "corrida", já que vem estudando moedas digitais desde 2014 e possui um instituto de pesquisa totalmente voltado a isso. O diretor do banco afirmou que está prestando atenção na Libra e que uma moeda digital do banco está prestes a ser lançada. Na Europa, além das possibilidades de proibição, também existe o interesse em desenvolver uma criptomoeda oficial. 

Dois legisladores americanos querem que se considere a criação de um dólar digital e, em uma carta enviada ao presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, descreveram suas preocupações sobre os riscos para o dólar americano se outro país ou empresa privada criar um criptomoeda amplamente usada.

Entre os riscos levantados a respeito das criptomoedas estão a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo, mas o maior problema seria: você confiaria o seu dinheiro a uma empresa de tecnologia?

Questionamentos também vindos de Bruxelas

A União Europeia vai introduzir uma legislação para prevenir que a Libra diminua o valor do Euro, sua moeda única. Segundo Valdis Dombrovskis, vice-presidente da comissão no comando da regulamentação financeira do bloco, disse que será necessário regular e supervisionar a Libra para garantir estabilidade financeira e monetária. Para ele, a Libra é um risco sistêmico ao Euro, devido ao tamanho das empresas que estão por trás da criptomoeda.  

O grande questionamento é sobre como as empresas de tecnologia protegeriam os usuários e suas posses de criminosos e terroristas que podem usar a moeda para lavagem de dinheiro. França e Alemanha afirmam que nenhuma empresa privada pode reivindicar poder monetário, que é uma característica inerente às nações soberanas.

Os governos não são os únicos críticos aos planos do Facebook: para Tim Cook, CEO da Apple, o projeto tem um plano de poder ganancioso. Ele também descartou a possibilidade de a Apple de lançar uma moeda digital própria e acredita que moedas devem ficar nas mãos de países, não de grupos privados. 

A única certeza que temos é de que muito ainda pode mudar até o lançamento oficial da moeda. Seja por conta das instabilidades internas, como a saída de empresas participantes, seja por instabilidades externas, como proibição ou regulamentações pesadas em alguns países, a Libra tem diversos desafios a superar antes de fazer parte da vida das pessoas.

É muito provável que o lançamento da Libra seja adiado, pois Zuckerberg já deixou claro que prefere fazer as coisas "com calma", já que se trata de um projeto complexo e com tantas questões em aberto. Por enquanto, a Libra e suas potencialidades nos deixam com mais questionamentos que certezas: ela realmente vai transformar nossa economia? Será mesmo uma ameaça aos bancos tradicionais? Existem riscos à segurança dos usuários? Essa será, realmente, uma questão de se pagar para ver.

Sobre a autora

Anielle Guedes estudou Física e Economia na Universidade de São Paulo e sem concluir os cursos de graduação embarcou em uma pós graduação nos Estados Unidos sobre inovação disruptiva na Singularity University (localizada em uma base da NASA). Assim virou especialista em tecnologias emergentes, foresight e desafios globais. Fundou uma startup de impressão 3D e manufatura avançada para construção, a qual liderou por 4 anos e atuou no Brasil, Estados Unidos e Europa. Foi eleita pela Forbes, MIT e Bloomberg como uma das jovens mais inovadoras do mundo. Tornou-se consultora em inovação e desenvolvimento econômico, participando de projetos de advisory e advocacy em governos federais e organismos multilaterais, além de ser conselheira de organizações como o Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável. Palestrou em mais de 30 países. Atualmente cursa Economia e Ciência Política pela Universty of London, London School of Economics.