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Anielle Guedes

Renda básica durante a pandemia - e depois da crise também

Anielle Guedes

08/04/2020 04h00

Tempos extraordinários de crise como estes que vivemos aceleram a adoção de tecnologias, tendências e comportamentos. Decisões que normalmente levam décadas para serem aceitas pelo público, produzidas em massa ou reguladas são catapultadas para a adoção em massa de um dia para o outro. Tempos como estes também podem trazer a necessidade da implementação de instrumentos econômicas emergenciais, como revogação de hipotecas, estabelecimento de linhas de crédito bilionárias para negócios, e a tão discutida renda básica. Diversos governos ao redor do mundo estão propondo programas de transferência de renda direta como forma de mitigar os impactos econômicos da pandemia.

Antes pequenos experimentos de transferência de renda direta incondicional que foram realizados na Finlândia, Canadá, Kenya e Índia, eram considerados politicamente desejáveis. Passaram a ser essenciais para recuperar economias inteiras. Agora milhões de pessoas passaram a receber de seus governos uma renda mensal incondicional. Quando acabar a crise, poderá a renda básica universal e incondicional ficar como legado, decretar o fim da pobreza absoluta, e preparar o mundo para uma economia com muito menos trabalho?

Sem renda e trancados há um mês: falta até comida 

O epicentro da epidemia na Europa, a Itália, amarga com a lentidão da chegada da renda básica universal. O país é um dos primeiros a entrar em lockdown, e está há mais de um mês completamente parado. Apenas serviços e produção industrial essenciais puderam continuar funcionando. Após este tempo sem nenhuma atividade econômica, muitas pessoas se encontram em dificuldades até para comer e contam com doações de grupos de assistência e comunidades religiosas. 

Os trabalhadores em situação informal, sazonal ou autônomos são os que estão em situação mais vulnerável. Eles não estão em nenhuma base de dados do governo italiano pois não fazem contribuições trabalhistas. Além disso não foi criado nenhum benefício que incluísse essas pessoas, já que o sistema italiano de benefícios sociais leva em consideração apenas aqueles que pagam impostos. Só na Campania há dois milhões de trabalhadores nesta situação: primeiro a renda desapareceu, depois, não são elegíveis a quaisquer benefícios. Na região, 41% dos cidadãos está sujeito a condições de pobreza. 

O governo italiano propôs uma série de medidas para aliviar a situação emergencial: moratória de hipotecas, "feriados" de pagamentos de empréstimos para pequenos negócios e uma espécie de seguro desemprego para aqueles que foram dispensados de seus empregos. Nenhum destes benefícios sociais chega aqueles que não estão no sistema. O Estado de bem estar existe mas é insuficiente e não chega a todos.

Dentre os que necessitam de auxílio, estão milhares de brasileiros que trabalham na Itália, alguns inclusive indocumentados. Estimam-se que são ao menos quatro mil brasileiros apenas em Roma trabalhando na informalidade e sem permissão de residência. Aline Quadros, advogada brasileira que mora na região da Lombardia, faz parte de um grupo ligado a comunidade brasileira católica em Roma que está arrecadando fundos para a doação de alimentos. Segundo Aline, a situação é grave e urgente: "Muitos brasileiros, antes trabalhadores esforçados, agora não tem dinheiro para comprar comida e suprir suas necessidades básicas". 

O grupo está arrecadando fundos e montando cestas básicas para doar a famílias brasileiras precisando de auxílio. Doações também estão sendo cadastradas pelo Consulado Brasileiro em Roma. Amilton Gomes, coordenador da campanha, espera entregar até as primeiras cestas básicas na próxima semana.

Enquanto a fome bate a porta de milhões de pessoas, o governo italiano avança apenas planos. Existem conversas de no próximo orçamento nacional, ser incluído uma renda de emergência, que cobriria aqueles que até este momento ainda não foram atendidos. O orçamento novo não sai até o final do mês. Como é que se coloca comida na mesa até lá?  

Auxílio emergencial é aprovado no Brasil mas já chega com falhas 

No Brasil a renda básica é um projeto conhecido na política brasileira. O atual vereador Eduardo Suplicy levanta bandeiras sobre o tema há mais de trinta anos e defende que a renda universal deva existir de forma incondicional. Apesar de ser uma proposta de alguns nichos políticos ligados à esquerda, a proposta tem ganhado força nas últimas semanas. 

Sobre a duração da renda básica se estender após a crise, e se tornar universalizada, parece não haver consenso social formado. Porém em meio às discordâncias de bancadas, o Congresso Nacional aprovou a renda emergencial, a ser paga ao menos durante a duração inicial da pandemia. O valor chega a mil e duzentos reais por família, e será pago por até no máximo três meses, depositado em uma conta digital ou conta poupança da Caixa Econômica Federal ou Banco do Brasil.

Para que o beneficiário possa receber o auxílio, este deve possuir os dados no sistema do Cadastro Único ou fazer um cadastro em aplicativo disponibilizado nesta semana pelo governo. Os critérios para elegibilidade e página de cadastro para MEIs (Micro Empreendedor Individual) e trabalhadores informais estão no site disponibilizado pela Caixa Econômica Federal.

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Uma das críticas que o programa está recebendo se deve ao fato dos usuários que ainda não possuem cadastro no Cadastro Único conseguirem se registrar apenas através de um aplicativo para smartphone ou site no computador, além de receber um código enviado por SMS. Muitos brasileiros ainda têm acesso apenas a celulares convencionais e não possuem alfabetização digital para fazer o cadastro sem assistência. Outra dificuldade é mais técnica, mas não menos excludente: cada número de celular deve estar associado a apenas uma conta, o que dificulta o acesso de pessoas que utilizam a mesma linha de celular ou que acessam a internet sem possuir número de telefone próprio. 

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua, o PNAD C, apenas 65,1% da população na Região Norte possui smartphone em 2017. Uma outra conclusão importante do estudo é a de quanto menor a escolarização, menor a penetração de smartphones. Entre aqueles que não possuem nenhum grau de instrução, o uso de smartphone era de 43,6% em 2017, comparado a 62% para aqueles que possuíam ensino fundamental incompleto. Já entre aqueles que possuíam ensino superior completo, 97,5% também possuem smartphone. Milhões de brasileiros que precisam do auxílio para enfrentar a crise não poderão receber o benefício por questões de acesso à tecnologia. 

Outro problema grave e que pode impedir o acesso adequado ao benefício está na definição e cadastramento de membros de família. Quando uma mulher chefe de família, aquela mulher que é responsável sozinha pela renda do domicílio, se inscrever para receber o benefício, ela teria direito a mil e duzentos reais. No entanto, cada membro da família para ser cadastrado deve possuir número de CPF. No Brasil, muitas crianças ainda não possuem número CPF, pois apenas há alguns anos que no ato de registro de nascimento já se solicita o documento. Portanto, estas crianças estariam excluídas do cadastro do Auxílio Emergencial, e as mães receberiam somente o valor individual de seiscentos reais. 

Segundo levantamento da Consultoria IDados, realizado com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),  o número de mulheres que são responsáveis financeiramente pelos domicílios vem crescendo a cada ano e já chega a trinta e quatro milhões de mulheres chefes de família. Isso significa que quase metade das casas brasileiras são chefiadas por mulheres. A questão técnica do cadastro com CPF pode fazer com que, milhões de mães, chefes de família, fiquem sem receber o benefício do Auxílio Emergencial correspondente com a função e responsabilidade financeira pela família. Uma mãe, chefe de família, com filhos sem CPF, recebe apenas 600 reais. Menos comida na mesa de quem mais vai precisar.

Na Espanha, ainda sem muito alarde, um programa ambicioso é proposto

Sem grandes holofotes e anúncios políticos, a Espanha pretende colocar em prática um dos programas mais ambiciosos de renda universal já implementados. O segundo país mais arrasado pelo Coronavírus no continente europeu, com mais fatalidades que a Itália até o momento, quer que parte do seu programa de auxílio ao país durante a crise seja uma renda básica universal. 

De acordo com a Ministra da Economia, Nadia Calvino, o governo pretende que o programa de renda básica espanhola "dure para sempre". Se a Espanha for bem sucedida em manter o programa funcionando após a crise do Coronavírus, será o primeiro país europeu a possuir tal instrumento e rede de proteção social permanente. 

O contexto espanhol é favorável para que a medida seja eleita como política pública duradoura. Um dos países mais atingidos pela crise de 2008, agora a Espanha teme uma recessão global e o público teme medidas de autoridades impostas uma década atrás. No entanto, pode ser difícil achar espaço no orçamento para uma medida custosa como esta. O nível de endividamento da economia espanhola é alto e não permitiria facilmente gastos sem ajustes fiscais. O parlamento ainda não votou sobre a questão, mas a coalizão atualmente no poder se mostra favorável a mais gastos sociais.

Na Finlândia houve um teste com renda mínima universal, em que 2000 cidadãos desempregados recebiam a soma de quinhentos e sessenta euros por mês. O projeto durou dois anos e especialistas concluíram que houve significativa melhora na saúde e felicidade dos participantes, mas não contribuiria significativamente no nível de empregos. O estudo também concluiu que precisava melhorar o método, pois as pesquisas foram feitas por telefone e um número baixo de respostas foi registrado. Além disso, um maior número de pessoas participado o estudo traria resultados mais confiáveis. É possível que com os programas de renda sendo lançados mundo agora haja evidências o suficiente para construir um argumento que permita uma longa vida a estas políticas públicas.

Os programas de transferência de renda direta realizados antes da pandemia tinham em mente outros cenários, como desemprego estrutural massivo e permanente, ou ainda uma profunda crise que a automação tecnológica poderia trazer. Se antes eram desejáveis, agora são mais do que necessários para colocar a economia nos trilhos. A pandemia passa a exigir que a solução econômica seja rápida, eficaz e abrangente a todos. 

Um choque econômico como este que estamos vivendo também pode ser encarado como um ensaio de um futuro em que a maior parte das pessoas está sem trabalho, ocupação e renda. A garantia de uma renda básica universal é uma solução viável de superação de desafios sociais atuais e futuros. Tempos de crise trazem enormes riscos, mas grande potencial de mudanças profundas. E este momento pode ser o ideal de deixar um legado de superação da pobreza contemporânea e preparar para os desafios que uma sociedade sem trabalho nos trará.

Sobre a autora

Anielle Guedes estudou Física e Economia na Universidade de São Paulo e sem concluir os cursos de graduação embarcou em uma pós graduação nos Estados Unidos sobre inovação disruptiva na Singularity University (localizada em uma base da NASA). Assim virou especialista em tecnologias emergentes, foresight e desafios globais. Fundou uma startup de impressão 3D e manufatura avançada para construção, a qual liderou por 4 anos e atuou no Brasil, Estados Unidos e Europa. Foi eleita pela Forbes, MIT e Bloomberg como uma das jovens mais inovadoras do mundo. Tornou-se consultora em inovação e desenvolvimento econômico, participando de projetos de advisory e advocacy em governos federais e organismos multilaterais, além de ser conselheira de organizações como o Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável. Palestrou em mais de 30 países. Atualmente cursa Economia e Ciência Política pela Universty of London, London School of Economics.