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Anielle Guedes

Talvez seu próximo tênis já tenha sido uma garrafa plástica

Anielle Guedes

25/04/2019 04h00

Em menos de um século de existência, o plástico se tornou um dos materiais de maior importância para a vida humana. Da escova de dentes utilizada de manhã às embalagens de comida que consumimos à noite: praticamente tudo contém plástico. No entanto, o material não "desaparece" de maneira tão rápida quanto a sua fabricação, utilização e descarte. A reciclagem, sozinha, não deu conta do volume assustador de plástico que consumimos – na primeira década do século XXI foram produzidos mais plásticos do que em todo o século XX. Vivemos uma verdadeira crise global. Terra e água estão contaminados com microplásticos, o que já coloca em risco a vida de animais, seres humanos e o futuro do planeta. Apesar do cenário catastrófico, soluções estão em desenvolvimento ao redor do mundo: proibir o plástico, reutilizá-lo, substituí-lo. Será que vamos conseguir evitar o tsunami de microplásticos?

Onipresente

Em 1907, quando o químico belga Leo Baekeland criou o primeiro plástico totalmente sintético da história, o Bakelite, provavelmente não tinha ideia de que essa invenção tomaria a proporção que atingiu, muito menos de seus malefícios ao planeta e às diversas formas de vida. Muitos anos e milhares de variações de novos materiais sintéticos depois, esse componente faz parte de cada etapa de nossas rotinas, presente mesmo onde não percebemos e, principalmente, onde não deveria estar. Até nossa comida está temperada com os microplásticos.

Quem utiliza as redes sociais com frequência, provavelmente acompanhou toda a discussão do carnaval ao redor do glitter e seus perigos para o meio ambiente. O glitter biodegradável chegou para salvar o dia, mas o que escapou da percepção dos foliões é que a poluição por microplásticos vai muito além do período carnavalesco. Pesquisadores descobriram que pedaços de plástico do tamanho de grãos de arroz estão presentes em todos os dez lagos, rios e reservatórios analisados no Reino Unido, com mais de mil pequenos pedaços de plástico por litro no rio Tâmisa, próximo a Manchester.

É claro que essa quantidade enorme de plástico em partículas tão pequenas causa danos muito além do que podemos ver a olho nu. Se a imagem de tartarugas engasgadas com sacolas plásticas ou com canudos já não for perturbadora o suficiente, tente imaginar o estômago de um animal repleto de pedacinhos de plástico. Pois é, e esses materiais já foram encontrados dentro de todos os mamíferos marinhos estudados recentemente no Reino Unido.

Mas além dos prejuízos aos animais, essas partículas causam problemas sérios à saúde dos humanos. Ingeridas, podem danificar órgãos e liberar substâncias químicas perigosas, como o bisfenol A (BPA), que causa disrupção hormonal, ou pesticidas, que podem prejudicar o sistema imunológico e impedem o crescimento e a reprodução. O microplástico conta, ainda, com bactérias que podem causar infecções. Uma pesquisa da Universidade Nacional de Cingapura encontrou mais de 400 tipos de bactérias em 275 pedaços de microplástico coletados em praias locais. Tanto o microplástico, quanto esses componentes, têm a capacidade de se acumular na cadeia alimentar e prejudicar ecossistemas inteiros. Eles podem estar nos alimentos que colhemos do solo, na carne animal que consumimos, na água que bebemos e no ar que respiramos. Não dá para fugir mais.

Banimento global

Segundo estimativas do Fórum Econômico Nacional, existem cerca de 150 milhões de toneladas de plástico nos mares do mundo. Se já não fosse o bastante, uma pesquisa publicada na Science em 2015 sugere que entre cinco e treze milhões de toneladas a mais estão chegando aos oceanos todos os anos. Se o plástico é tão presente em nosso dia a dia, será que podemos reduzir esse fluxo que leva à poluição de nossos mares e solo?

Para uns, a proibição do uso de plástico descartável é o caminho mais seguro para reduzir os níveis de contaminação causados pelo material. O Parlamento Europeu aprovou uma lei que proíbe uma vasta gama de artigos descartáveis, como talheres e hastes flexíveis, como canudos, até 2021. Ao todo, serão dez itens de plástico de uso único que serão proibidos na Europa para conter a poluição do oceano. A lei é ambiciosa e prevê também uma meta de coletar e reciclar 90% das garrafas de bebidas até 2029.

Em uma abordagem parecida, a Índia pretende eliminar plásticos descartáveis, como copos, pratos e talheres, até 2022. Em Mumbai, a lei proíbe a fabricação, comercialização e uso de utensílios de plástico de uso único. E a punição é tão dura quanto a proibição: quem for visto utilizando os itens proibidos pagará multas de 5000 rúpias (equivalente a R$290,00), se for o primeiro delito, e 25000 rúpias (R$1430,00) e três meses de prisão em caso de reincidência.

Nova York segue com uma proposta um pouco mais branda, com a proibição estadual à maioria das sacolas plásticas de uso único das vendas no varejo, seguindo o modelo da Califórnia e do Havaí. Os compradores poderão optar por pagar uma taxa de cinco centavos em sacolas de papel, receita que seria destinada ao Fundo de Proteção Ambiental do estado.

Um plástico que nunca mais será lixo

Mas muito mais urgente do que a simples proibição de plásticos, que será limitada a alguns itens, e provavelmente não terá a escala necessária, é uma nova abordagem para lidar com o material. Se temos a capacidade de reciclar, por que não fazer com que o plástico jamais tenha a necessidade de descarte? Pensando dessa forma, a Adidas desenvolveu o Futurecraft Loop, um tênis que pode ser totalmente reciclado em novos sapatos. Este é o primeiro tênis para corrida de desempenho projetado para um ciclo de vida circular: se o tênis está muito desgastado ou se você se cansou dele, basta devolver à Adidas e ele será reciclado. 100% do sapato já é reciclável, e apesar de um tênis reciclado ainda não ser suficiente para produzir um item novo com a mesma performance, a empresa visa melhorar esse processo, até o lançamento global do produto em 2021.

Além da Adidas, a marca novaiorquina Rothy's e a também norteamericana Nike produzem sapatos leves com fibras de plástico descartado.

Para avançar nas aplicações de plásticos pós-consumo, podem ser usadas combinações de materiais para filamentos de impressão 3D, como é o caso dos produtos desenvolvidos pela startup brasileira PrintGreen3D que utiliza materiais descartados pela indústria, como garrafas PET, copos descartáveis e outras embalagens plásticas. E dá para chegar ainda mais longe: utilizando a impressão 3D, o casal Virginia San Fratello e Ronald Rael vive em uma casa feita com materiais alternativos, como casca de uva, serragem e cimento. Pioneiros na tecnologia, o casal desenvolve técnicas mais sustentáveis para construções, muitas vezes utilizando materiais de baixo custo, numa gama que vai de lama a palha de café. A combinação dos filamentos de recicláveis e seus possíveis usos na construção civil tem um potencial enorme de economia de recursos, já que para construir uma casa de 50 metros quadrados são usados mais de 10 toneladas de materiais em volume.

E não é apenas no setor da moda ou nas aplicações industriais que a questão dos microplásticos está sendo combatida com a criação de produtos à base de matérias-primas alternativas. Os brinquedos infantis também podem ser sustentáveis, como é o caso do Twist Teether, da americana Green Toys, que é feito com plástico reciclável, livre de BPA, ftalatos e PVC, e impresso com tintas de soja.

A gigante Lego também está seguindo a tendência de materiais sustentáveis, por meio do desenvolvimento de brinquedos feitos com plástico proveniente de cana-de-açúcar. A iniciativa é parte da promessa da empresa de utilizar materiais sustentáveis nos produtos e embalagens até 2030. Segundo a Lego, o material vem de uma fonte renovável e segue altos padrões de qualidade e segurança.

E se a maior parte dos microplásticos está nos oceanos, retirá-los de lá para fazer produtos que não voltarão para o mar é uma das maneiras mais eficientes de resgatar a vida marinha. O esfregão Positiva é um exemplo de como produtos que normalmente seriam descartados podem cumprir novas funções. Feito com redes de pesca industrial de poliamida, utilizadas por pescadores de Santa Catarina, o esfregão ecológico dura por tempo indeterminado e não libera microplásticos por, pelo menos, seis anos de uso.

Após todo esse período de utilização para limpeza, o esfregão ainda pode ser reciclado. A Positiva também conta com uma gama de produtos biodegradáveis, veganos e hipoalergênicos, todos armazenados em embalagens produzidas a partir de plástico reciclado, coletado no litoral.

Lixo é um erro de design

A produção de lixo nos níveis atuais não é apenas prejudicial ao meio ambiente, mas também representa um alto custo às empresas, uma vez que os recursos não são utilizados em todo o seu potencial. No exemplo da PrintGreen3D, por meio dos "restos" industriais nascem inúmeras oportunidades de produção e desenvolvimento de produtos.

Mas para que isso aconteça, é preciso que as empresas repensem seus processos e busquem parcerias com desenvolvedores de soluções alternativas. Existem centenas de empresas que utilizam materiais naturais para substituir o plástico. É o caso, por exemplo, da Ecovative que desenvolve embalagens compostáveis a partir do micélio, estrutura das raízes de um cogumelo, e resíduos agrícolas não alimentares. O micélio age como uma cola natural que une partículas de forma que a embalagem se torna tão isolante e resistente ao fogo quanto o poliestireno, apesar de se decompor em apenas uma semana. A ideia estranha de usar cogumelos como embalagem tem feito sucesso, tanto que as gigantes Ikea e IBM deixaram o isopor de lado e agora utilizam as embalagens da Ecovative.

Outro bom exemplo é a brasileira Oka Biotecnologia, que utiliza matérias-primas renováveis, como mandioca, para produzir embalagens biodegradáveis. Totalmente compostáveis e biodegradáveis, as embalagens da Oka ainda podem se tornar ração ao fim do uso. Os produtos também podem ser aquecidos, não contêm glúten e vêm com uma cinta de papel semente que se transforma em uma muda de manjericão.

A solução também pode ser mais simples, vinda de materiais já existentes, comuns ao nosso dia a dia – a Diageo, produtora da Guinness, deixará para trás os anéis plásticos flexíveis que eram utilizados para manter as latas juntas e adotará caixas de papelão. Nesse movimento, a empresa reduzirá cerca de 400 toneladas de resíduos plásticos por ano e segundo a Diageo esse peso é o equivalente à quantidade de plástico utilizada para fabricar 40 milhões de garrafas de bebidas de 500mL. A empresa também se comprometeu a comprar toda a celulose usada para a produção das embalagens de papelão a partir de fontes sustentáveis.

Por falar em soluções tradicionais, as já conhecidas garrafas de refrigerantes reutilizáveis ganharam uma abordagem mais arrojada. A Loop é uma empresa que visa à redução de lixo em produtos de consumo, como sorvetes, desodorantes, cápsulas de café, entre outras dezenas de itens que encontramos nos supermercados. Por meio de embalagens reutilizáveis de alta qualidade, produzidas com aço e vidro, o serviço on-line da empresa possibilita que os clientes realizem a compra dos produtos no site, os utilizem até o fim e devolvam as embalagens. Os containers são higienizados e reutilizados, criando um ciclo renovável e sem lixo. A volta do "homem do leite", que trazia e levava garrafas de vidro às nossas casas pela manhã, ganha sua versão digital.

Não é um desafio simples. Se por um lado, algumas empresas e cidades buscam soluções para a onipresença do plástico, por outro a produção e descarte de plástico seguem em constante crescimento. Quem ganhará a corrida: as montanhas de plástico descartável, ou a criatividade e engenhosidade humanas? Quem sabe sua próxima garrafa plástica de água vai virar um tênis. Esperamos que ela não tenha nem de ser produzida.

 

 

 

 

 

Sobre a autora

Anielle Guedes estudou Física e Economia na Universidade de São Paulo e sem concluir os cursos de graduação embarcou em uma pós graduação nos Estados Unidos sobre inovação disruptiva na Singularity University (localizada em uma base da NASA). Assim virou especialista em tecnologias emergentes, foresight e desafios globais. Fundou uma startup de impressão 3D e manufatura avançada para construção, a qual liderou por 4 anos e atuou no Brasil, Estados Unidos e Europa. Foi eleita pela Forbes, MIT e Bloomberg como uma das jovens mais inovadoras do mundo. Tornou-se consultora em inovação e desenvolvimento econômico, participando de projetos de advisory e advocacy em governos federais e organismos multilaterais, além de ser conselheira de organizações como o Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável. Palestrou em mais de 30 países. Atualmente cursa Economia e Ciência Política pela Universty of London, London School of Economics.